quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA (GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ)

"As dúvidas continuavam sem solução na noite de Natal, quando estremeceu com a sensação de que ele a olhava do meio da multidão da missa do galo, e essa inquietação lhe sufocou o coração. Não se atreveu a voltar a cabeça, porque estava sentada entre o pai e a tia, e teve que se dominar para que não percebessem sua perturbação. Mas na desordem da saída sentiu-o tão iminente, tão nítido no tumulto, que uma força irrestível a obrigou a olhar por cima do ombro quando abandonava o templo pela nave central, e então viu a dois palmos de seus olhos os outros olhos de gelo, o rosto lívido, os lábios petrificados pelo susto do amor. Transtornada por sua própria audácia, se agarrou ao braço de Tia Escolástica para não cair, e esta sentiu o suor glacial da mão através da mitene de renda, e a reconfortou com um sinal imperceptível de cumplicidade sem condições. Em meio ao estrondo dos foguetes e dos tambores, das lanternas coloridas nos portais e clamor das multidões sedentas de paz, Florentino Ariza vagou feito um sonâmbulo até o raiar do dia vendo a festa através das lágrimas, aturdido pela alucinação de que era ele e não Deus que tinha nascido aquela noite."