sexta-feira, 19 de junho de 2009

"O SÉCULO DAS LUZES", de Alejo Carpentier

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Ah, o prazer de ler um livro bom! O prazer de ler de saborear as palavras! Tudo isso me traz Alejo Carpentier num livro que é quase mágico. De doer de tão bom!

Não deixa de ser irônico o título. Fala da conturbada época da Revolução Francesa e seus ecos, ainda que sempre atrasados aqui, no Novo Mundo, mais exatamente no Caribe.

Quando Victor Hugues chega a Cuba e inocula nos jovens representantes de uma família rica de Havana os ideais da Revolução Francesa, tudo muda, para o bem e para o mal. Carlos, Sophia e Esteban - que é quem conta a maior parte da história - são levados a crer que um mundo estava acabando e outro florescia sob a ordem do povo. De fato, historicamente, um mundo acabou e outro nasceu. Mas o povo ficou nas mãos daqueles que sempre querem criar o "novo povo", o "novo homem', nem que seja sob as finas e precisas lâminas de uma guilhotina.

O Caribe já estava meio convulsionado. Victor Hugues era um comerciante em Port-au-Prince, no Haiti, e retorna para lá, já com seus três novos companheiros durante uma revolta:

"Uma calma de carvões apagados, de rescaldos, de brasas sobre a terra coberta de escombros, dava um ar bucólico a quem vinha apregoando o leite de suas cabras malhadas, o perfume de seus jasmins, a pureza de seu mel. O gigante que, lá na ponta do quebra-mar, oferecia uma enorma lula enlaçada no braço erguido transfigurava-se no Perseu de Cellini. Alguns religiosos, ao longe, retiravam osandaimes chamuscados de uma igreja em construção. Passavam burricos carregados por ruas que não eram mais ruas, seguindo, porém, o itinerário habitual, contornando os trechos onde já não se podia seguir reto, demorando-se numa esquina ilusória na qual o taberneiro reinstalara suas garrafas de aguardente sobre tábuas montadas em tijolos. Victor media e remedia com os olhos a área de seu comércio aniquilado, estranhamente tornado, dentro de sua ira arrefecida, pelo sentimento libertador de não possuir nada, de ter ficado sem um pertence, sem um móvel, um contrato, um livro - sem uma carta amarelada, na visão de cuja letra se pudesse enternecer."

Victor - que existiu mesmo - acaba se tornando o representante maior da Revolução Francesa em Guadalupe, ilha que enriquece à medida em que segue meticulosamente os passos do Incorruptível, Robespierre, quando este sobe ao poder na França. Vence os ingleses, garante um alto estoque de alimentos, vive pela Revolução e até sobrevive depois do golpe dos termidorianos que detonam a cabeça de Robespierre. Como é um jacobino de alma, não consegue fazer nada avançar sem ter por perto a Máquina, a guilhotina, e incutir na população o medo, o terror, a visão da morte na Praça da Vitória. Um decreto abole a escravatura e Victor Hugues o segue de primeira. Posteriormente, quando está administrando Caiena, vai reinstaurá-la: ordens de Napoleão e lá vai o Auditor caçar negros Floresta Amazônica a dentro. Os mesmos que libertou.

Toda revolução consome seus próprios defensores. Esteban, um dos protagonistas, se desespera ao ver os rumos que as coisas estão tomando. Este personagem, que hesita em tomar parte diretamente dos acontecimentos, não consegue entender a dinâmica autofágica daquele momento que parecia ter surgido para libertar todos os homens e todos os povos do jugo dos tiranos. É espanhol e já começa a ser visto como um estorvo e um potencial traidor pelos revolucionários. Um amigo seu, também um espanhol, Martim de Ballesteros, diz a Esteban, quando este está traduzindo a mando de Hugues da Declaração dos Direitos do Homem:

"(...) de dezessete princípios eles violam doze a cada dia. Tomaram a Bastilha para libertar quatro falsários, dois loucos e um maricas, mas criaram o presídio de Caiena, que é muito pior do que qualquer Bastilha."

A Revolução Francesa também tinha os seus gulags. E perseguia, claro, os religiosos. Os padres tinham que jurar a Constituição e os que não faziam eram duramente atacados. Igrejas foram destruídas, conventos fechados... Tudo isso para depois as coisas voltarem ao normal sob a batuta de Napoleão após a Concordata de Roma - ou seja, quem perseguiu teve engolir a reabertura dos conventos, da igrejas , do rito romano e a morte prematura do Ser Supremo, o deus da Revolução Francesa. Esteban, a propósito, faz uma bela reflexão sobre a importância da Igreja na construção da civilização:

"O Ser Supremo era um deus sem história. Não surgira um moisés com estatura suficiente para escutar as palavras da Sarça Ardente e mediar uma Aliança entre o Eterno e as tribos de sua predileção. Não se tornara carne nem habitara entre nós. (...) Sem necessidade de rezar, pois não tinha fé, Esteban apreciava a companhia do crucificado, sentindo-se restituído a um ambiente familiar. Aquele Deus lhe pertencia por herança e por direito; podia renegá-lo, mas formava parte do patrimônio dos seres de sua raça."

Sophia, a prima de Esteban, apaixonada por Victor Hugues, logo se decepciona com o seu amado que não tem mais a "pegada" de revolucionário. Faz o que lhe mandam. Depois de tanto tempo sem vê-lo e ainda acreditando nos ideais que incendiaram a Europa, ela vê Victor se transformar num burocrata que não quer mais saber de confusão pro seu lado.

"O século das luzes" é um passeio maravilhoso pela História. Alejo Carpentier é um dos maiores entre os maiores. Não julga a Revolução Francesa e tampouco a idealiza.

Altamente recomendado.