Em cada classe, em cada região, em cada sindicato, em cada empresa, em cada família, em cada alma, o que se nota é um sentimento agudo e exasperado dos próprios direitos e o completo amortecimento do senso do dever. É o predomínio desastroso do reivindicar e protestar sobre o criar e oferecer.
Quanto menos cumpre sua obrigação, mais cada um se crê no direito de acusar o próximo. O governo reprime os aumentos abusivos de preços enquanto protege as elevadas taxas de juros e alimenta a gigantesca tênia petrolífera que pela majoração periódica dos combustíveis vai marcando o compasso para a subida generalizada do custo de vida.
O pai de família vocifera contra a corrupção dos políticos enquanto solicita a um contador que "dê uns retoques" na sua declaração de rendimentos para tornar mais verossímil a mentira que o isentará do imposto.
As empresas censuram o governo no instante mesmo em que elevam os preços de seus produtos e serviços acima de tudo quanto permite a lei e recomenda a decência.
A esquerda clama contra as oligarquias enquanto promove greves de funcionários públicos voltadas diretamente contra os direitos da população.
Os intelectuais e artistas clamam contra as injustiças enquanto levam vida de príncipes às expensas do erário público.
A imprensa acusa, delata, aponta homens e instituições ao opróbrio, enquanto discretamente, em congressos de profissionais longe dos olhos da multidão, confessa sua própria falta de decoro, ética e dignidade.
Os sem-terra exibem diante das câmeras sua pobreza comovente enquanto gastam fortunas em operações paramilitares que o próprio exército não teria verba para sustentar.
O discurso do unanimismo, como o coro entusiástico das torcidas durante a Copa, não é senão um Ersatz, a ostentação de uma unidade postiça que encobre a luta covarde e sem regras de todos contra todos.
Escrito em 1994 por Olavo de Carvalho. Prefácio à segunda edição de “A nova era e a revolução cultural”. O tempo parou no Brasil.