quinta-feira, 26 de junho de 2008

A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO DÁGUA, de Jorge Amado

A primeira vez que tive contato com essa história foi num especial da TV Globo, lá pelo anos 70. Você já deve ter visto alguma coisa no Vídeo Show: Quincas foi interpretado por Paulo Gracindo de forma magistral. A direção foi de Walter Avancini e o roteiro, se a memória não me falha, é de Walter George Durst.

A novela (novela em termos de literatura) foi escrita originalmente para o primeiro número da Revista Senhor e assim publicada em 1959. Conta a história de Joaquim Soares da Cunha, tido como um excelente funcionário público, bom pai de família, bom marido que, de uma hora pra outra, larga tudo e leva uma vida de vagabundagem pelas ruas de Salvador. Vira a vergonha da família e o orgulho dos amigos de copo e miséria e é justamente no seu velório que estes dois mundos (o oficial e o subterrâneo) se cruzam.

Quincas está lá, com as canelas esticadas, com um sorriso debochado na cara, à espera do seu sepultamento num lugar que não escolheu para o seu túmulo: um cemitério comum, onde seu caixão repousará ao lado de Otacília, sua falecida esposa, a quem só se refere como "jararaca". Quincas queria o mar como última morada. Lá pelas tantas, o morto parece ter dado sinais de vida. Então Quincas é levado do velório pelos seus companheiros Pé-de-Vento, Negro Pastinha, Curió e Cabo Martim. E aqui há um jogo interessante, feito para confundir o leitor: afinal, o homem morreu ou não morreu? O defunto fala? Ou apenas pensa? Ele parece se comunicar. Chega a provocar uma confusão num boteco. E parte para sua segunda morte. A verdadeira, segundo ele.

Prefiro esta fase de Jorge Amado. A primeira é aquela coisa ranheta, partidária e, segundo Affonso Romano de Sant'anna "até sectária (que vai até meados dos anos 50)" quando "ele se desvencilha dos compromissos com o Partido Comunista, que lhe pautava a escrita (ele mesmo reconheceu isso em entrevistas)". Desta etapa, li aos 15 anos "Capitães da areia" e, na época, fiquei maravilhado. Da segunda vez que li, a trabalho e já adulto, achei um amontoado de asneiras esquerdistas, assim como "Jubiabá", onde o protagonista, Antônio Balduíno, se realiza fazendo greves e todos os ricos são perversos por natureza. Uma pobreza maniqueísta, enfim. Desta época, o melhor é o poético "Mar morto", escrito em 1936 (que depois foi adaptado para a TV e, misturado com "A descoberta da América pelos turcos" virou a novela "Porto dos Milagres").

Depois de se livrar da canga stalinista, creio, surge o verdadeiro Jorge Amado. "Dona Flor e seus dois maridos" é um primor de bom humor e realismo fantástico, com belas passagens de planos. Vejam bem: não considero Jorge Amado o nosso melhor romancista nem de longe. Do que eu li, não me privo de dizer que o melhor romance brasileiro contemporâneo é "A pedra do reino" (fiquei meio decepcionado quando o li pela primeira vez e maravilhado da segunda - o Brasil está todo ali, o mundo está todo ali). Jorge, no entanto, é um baita argumentista. Se resolvesse escrever novelas ficaria ali, pau a pau com Dias Gomes e Janete Clair. Tem livros sofríveis, como o chatíssimo "Tieta do agreste", mas os que são bons, são bons mesmo. O melhor é "Tenda dos Milagres": irretocável.

Mas volto ao romance que dá título a este texto.

Vale a pena perder um dia chuvoso como ontem aqui no Rio com a leitura de "A morte e a morte de Quincas Berro Dágua". A edição da Companhia das Letras, que agora edita as obras do autor, tem 92 páginas (fora o posfácio do já citado Affonso Romano de Sant'anna) e pode ser lido em pouca horas.