sábado, 8 de maio de 2010

HERESIAS MEDIEVAIS, de Nachman Falbel – Parte 2

image Continuando com a série sobre as heresias medievais, hoje vamos conhecer um pouco sobre o processo contra o herético e vamos conhecer também a heresia de Amaury de Bène.

Como era promovido o processo contra o herético?

O processo contra o herético muitas vezes era feito de tal modo que o acusado ignorava o nome do próprio acusador, sendo que mulheres, escravos ou crianças podiam servir de testemunhas de acusação, mas nunca de defesa. Para obter a confissão podia-se utilizar métodos que não deixavam de ser. De certa forma, torturas, como, por exemplo, a fadiga, propositalmente provocada, ou o enfraquecimento físico do acusado. Uma vez apurada a culpa, concedia-se ao réu um prazo para que se apresentasse espontaneamente ao tribunal. Caso isso não ocorresse, poderia ser denunciado pelo inquisidor e ser preso. Em caso de confissão de culpa, dava-se ao acusado a oportunidade de retratar-se, sendo que, neste caso, deveria submeter-se a uma série de penitências, flagelações, peregrinações e, em casos graves, à prisão. Porém, se o acusado persistisse em seu pecado, era julgado e entregue ao braço secular que, por sua vez, o cinduzia à fogueira.

Qual foi a principal atitude do Papa Gregório IX?

A fim de evitar que a Inquisição tivesse outras finalidades que não o combate à heresia, ligou-a diretamente à Igreja e ao papado. Algumas vezes, os bispos sentiram que a Inquisição intervinha excessivamente em seus direitos. Por isso, no Concílio de Viena, em 1312, ordenou a cooperação mútua entre os inquisidores papais e episcopais.

Afinal, como eram vistos os inquisidores?

Devemos levar em consideração que os inquisidores passaram a manejar um aparato de auxiliares, conselheiros, escribas, policiais, que faziam com que a função fosse vista com respeito e adquirisse dignidade. Mesmo porque o poder de excomungar senhores laicos ou príncipes fazia com que eles recebessem o apoio das autoridades laicas.

Por outro lado, sua respeitabilidade derivava do fato de destacarem-se pela erudição e conduta exemplar. Com o tempo, foram escritos manuais pelos inquisidores mais experientes que procuravam orientar os perseguidores das heresias sobre os seus fundamentos doutrinários e também sobre a técnica ou o modo de conseguir a confissão do acusado.

Quem foi Amaury de Bène?

Foi professor de Filosofia em Paris que chegou a ser convidado pelo rei Filipe Augusto para ser preceptor do delfim. Vinculou-se ao pensamento de Escoto Erígena e formulou uma concepção claramente panteísta. Tentou harmonizar sua concepção com os dogmas cristãos. Afirmava que o mundo momentaneamente diferenciado devia corresponder a três épocas classificadas sucessivamente sob a dependência de uma das três pessoas da Trindade. No curso da segunda época, cada fiel deve considerar-se como um membro de Jesus Cristo, e na terceira época, cada um poderá considerar-se como encarnação do Espírito Santo.

Qual seria a consequência desse pensamento?

É que cada homem seria submetido à ação salvadora direta do Espírito Santo, sem a mediação do simbolismo sacramental. De fato, segundo Amaury, os sacramentos substituíram a lei e seriam, por sua vez, substituídos pela ação imediata do Espírito Santo. Está claro que o pensamento de Amaury se chocava com a ortodoxia, uma vez que contradizia o dogma da eucaristia, o julgamento após a morte, a punição dos pecados, bem como os sacramentos. Já que a anulação final em Deus é o fim de tudo, fica suprimida a vida futura individual e deixa inutilizadas as recomendações purificadoras da Igreja.

Amaury foi condenado em 1207. Abandonou sua cátedra de Paris e retirou-se para um convento onde faleceu.

Quais foram os continuadores de Amaury de Bène?

Os amalricianos, que, por sinal, se aprofundaram na heresia. Falavam de uma tríplice encarnação de Deus, como Pai em Abraão, como Filho em Cristo e como Espírito Santo em cada crente. Negavam os sacramentos e as instituições eclesiásticas, viam no papa o Anticristo e pretendiam ilimitada liberdade moral. Foram descobertos em 1209, em Paris e condenados em Concílio em 1210. Seus membros foram degradados das ordens sagradas e entregues ao braço secular que os fez queimar. O corpo de Amaury foi desenterrado e reduzido a cinzas. Em 1215, o Concílio de Latrão renovou a condenação aos amalricianos.

Qual a influência dos escritos de Aristóteles sobre as heresias teológicas?

Aristóteles, ao ser traduzido, causou certa inquietação intelectual na Universidade de Paris. Não faltaram os que associassem seus textos às heresias de Amaury de Bène e de outro herege com tendências panteístas, chamado David de Dinant. Mas o fato é que o pensamento aristotélico não teve influência tão direta sobre estas heresias e nenhuma sobre as heresias populares do tipo da dos albigenses, valdenses ou dos beguinos, de quem falaremos adiante. Estas nasceram do sentimento popular e não do criticismo teológico; no ataque às instituições e costumes eclesiásticos e não na especulação filosófica.

Pode-se afirmar que a heresia de Amaury de Bène foi um elemento de transição entre as heresias teológicas e as populares?

Sim. O panteísmo de Amaury empregava a língua vulgar, possuía formas ontológicas precisas e simples e apresentava determinado caráter profético, antecipando o tipo de heresia popular joaquimita – do qual também falaremos mais tarde, que tanto influenciou a heresia medieval.

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Parte 1 aqui.