quinta-feira, 1 de julho de 2010

GRITOS NO SILÊNCIO CUBANO

MARIANA TIMÓTEO DA COSTA – O GLOBO – 30/06/2010

Voltei recentemente de Cuba com um grupo de amigos, todos jornalistas que vivem em Caracas. Mais do que turismo pelas majestosas Havana e Viñales, no interior, nos interessou conversar com os cubanos, saber como vivem e o que pensam sobre a Revolução. Fomos a casas de famílias, a festas, a bares, restaurantes, levamos uma bola de futebol e jogamos com gente nas ruas. O que pudemos ver foi um povo pobre, mas distanciado da miséria. Grato por não morrer de fome, ter acesso ao serviço público de saúde, por poder estudar e viver num país em que a violência praticamente inexiste nas ruas — graças às rígidas políticas da Revolução, que ameaça com a prisão perpétua quem pratique um crime.

Musicais e sensuais, os cubanos adoram salsa e reggaeton e estão sempre sorrindo, mas, quando confiam nos interlocutores, fazem duras críticas ao modo como vivem. Sonham com liberdade e oportunidades.

Impressiona a quantidade de gente que não faz nada o dia todo. Não há trabalho — ou ele não vale a pena. Nas casas de Havana que antes deveriam ser lindas, mas quase todas hoje em ruínas, as pessoas passam o dia matando o tempo, sentadas nas varandas ou em mesinhas nas calçadas. Pedem tudo: de balas a artigos de higiene pessoal. Dinheiro não, porque pode dar cadeia.

Quando falam sobre sua situação, olham em volta para ver se não estão sendo vigiados por um integrante do Comitê de Defesa da Revolução (CDR) — fiscais que ganhariam, segundo eles, cerca de 1.000 cucs por mês, o equivalente a mais de US$ 1 mil. O salário mensal de quem não é do comitê, quando muito, é em torno de US$ 10.

Os cucs (moeda conversível) recebidos pelos cubanos dos turistas devem ser trocados em centros especializados pelo desvalorizado peso, a única moeda que podem usar. A diferença no tratamento recebido entre cubanos e estrangeiros é visível em sorveterias como a famosa Coppelia. Para os turistas que pagam em cucs, há sete opções de sabores de sorvete e não há filas. Nos locais que pagam em pesos, precisam esperar por até três horas para serem servidos. Para esses, só há dois sabores disponíveis: creme e chocolate.

Uma consequência da falta de empregos — aliada à avidez por moeda conversível — é a prostituição, que parece praticamente legalizada: 60 cucs por noite, na Casa de la Musica, uma das boates mais famosas da capital. De Fidel Castro, e muito menos de Che Guevara, ninguém fala mal: são ícones, incontestáveis. Mas Raúl Castro está sob críticas duras. A sensação é de que o atual líder não cumpriu a abertura prometida, que a repressão aumentou e as oportunidades diminuíram. Além disso, relatam, ele não possui o carisma e nem representa para eles a figura paterna do irmão, Fidel.

Os cubanos também não mostram nenhum afeto especial pelo venezuelano Hugo Chávez, que nos últimos anos vem salvando o regime cubano da bancarrota — fornecendo um fluxo de comércio anual de US$ 7 bilhões com Caracas e o envio diário de quase 100 mil barris de petróleo à ilha. Quase não falam de Chávez, muito menos o elogiam. Mais comum é ouvir que, se não fosse a ajuda dele, talvez a situação na ilha hoje fosse diferente.

Em Viñales, no interior, a exibição da novela “A favorita”, da Rede Globo, e os jogos da Copa do Mundo ganham dedicação completa. Muitos não têm TV em casa e se agrupam em bares e restaurantes para assistir. Com sorte e jeitinhos especiais, há quem consiga acesso a canais mexicanos, graças a parabólicas, e a séries de TV americanas, em DVDs piratas.

O gerente de uma fábrica de puros — os charutos cubanos — se diz sortudo de ter trabalho. Confessa depender das gorjetas que ganha dos turistas para viver melhor, apesar de trabalhar de domingo a domingo, das 6h às 22h: “Tudo pertence ao Estado, que fica com todo o lucro. Sou praticamente um escravo, ganho muito pouco.” Após a visita à fábrica, a noite em Viñales era de festa. Uma das músicas que mais empolgavam era a belíssima “Hasta siempre comandante”, de Carlos Puebla, exaltação oficialista a Che Guevara. Mas, num canto do centro cultural, quando havia menos gente e longe dos fiscais, um grupo de cubanos mostrava, num arquivo MP3 de um celular, o que eles realmente gostam de ouvir: “Contrarrevolucionário”, música do grupo de rap Los Aldeanos, que lembra o brasileiro Racionais MC. A letra diz:

“Sim, viva a Cuba livre.

É hora de falar claro.

Contrarrevolucionário,

o nome que me deram

Por ver, ouvir e pensar E não ficar calado (...)

Dizem que estou equivocado,

Que minha luta é falsa,

Mas o povo me escuta,

Porque digo a verdade (...)

É muito fácil fazer discursos de oito horas,

E culpar o bloqueio.

Nação de erros,

Que não descansam.

Ninguém tem esperança (...)

Condição grave,

Informação em estado crítico,

Os jornais são programas humorísticos.

Roteiros ridículos (...),

Uma mesa-redonda

Que redunda sem sentido.

Povo envolto em dor,

Não há saída (...)

Medo, pressão (...)

A esperança é a emigração (...)

Não sou um problema,

Sou o resultado de um experimento (...),

E segue a perseguição.

Prometem me mandar preso (...)

Seria um ato de traição (...)

Mas mostro a realidade cubana,

Em cada região,

Minha posição é firme,

Que se foda a repressão.
A verdade não é um crime,

Seu perdão não me importa.

Cada canção,

O grito de silêncio de uma nação.

Contrarrevolucionário (...)”

Para muitos cubanos, depois de mais de 50 anos de Revolução, essa música de uma banda semiclandestina parece ter mais a cara de Cuba na sua plena realidade.