Demorei, mas consegui fazer a segunda parte da séria série “O que os historiadores falam sobre a Inquisição”. Já disse e repito: não sou católico. Já disse e repito: não estou defendendo a Inquisição. Já disse e repito: não acredito em homens do seu tempo, expressão que volta e meia surge para legitimar atrocidades.
Nos textos abaixo, os historiadores cujos nomes são citados nos dizem que a Inquisição acabou sendo engolida pelo poder temporal, pelo braço secular, pelo raio que seja. Foi apoiada por príncipes e reis: alguns só pensando no que poderiam render os confiscos dos bens dos hereges; outros, que acreditavam que a ortodoxia estava zelando pela civilização – o que, se pensarmos na heresia cátara, não está muito longe da verdade, ainda que os meios não tivessem sido lá os mais civilizados.
"A Inquisição é sempre considerada uma instituição da Igreja. Isto está certo, mas convém enfatizar uma realidade fundamental, evidente, mas frequentemente esquecida, a saber: a Inquisição só podia atuar associada aos poderes leigos. Ela não dispunha de poder material. Ela só podia incutir temor se contasse com o apoio dos príncipes e dos governos. Em lugar nenhum os inquisidores podiam prender alguém, assentar-se, julgar, mandar executar sua sentença, se não dispusessem da força armada e da assistência do regime local, dos seus representantes e dos seus agentes.
Essa colaboração era tida como um dever de Estado por parte dos detentores do poder temporal. Tal colaboração era mais fácil na medida do interesse dos governantes na confiscação dos bens dos condenados, que redundavam em favor do Estado em troca do sustento ministrado aos inquisidores em relação ao poder civil. Na verdade, os gastos com os inquisidores eram elevados, como demonstram as raras prestações de contas que foram conservadas.
Enfim é certo que a erradicação dos comportamentos indesejados e o reforço da unidade da Igreja e de unidade da fé serviu à unidade política numa época em que o vínculo religioso era a única garantia da coesão das populações."
Jean-Louis Biget, Ecole Normale Supérieure de Saint-Cloud
“Era, talvez, inevitável que em qualquer momento fossem instituídos tribunais regulares, mas esses tribunais foram marcados por uma dureza particular, em razão do renascimento do Direito Romano: as constituições de Justiniano, realmente, mandavam condenar os hereges à morte. E é para fazê-lo viver que Frederico II, tornado imperador da Alemanha, promulga, em 1224, novas constituições imperiais, que, pela primeira vez, estipulam, expressamente, a pena da fogueira contra hereges empedernidos. Assim se vê que a Inquisição, no que ela tem de mais assustador é fruto de disposições tomadas, de início, por um imperador em quem se pode encontrar o protótipo do "monarca esclarecido", apesar de ter sido, ele próprio, um cético e logo excomungado.”
As concessões dos religiosos se voltaram contra eles mesmos:
"Ora, todo este aparelhamento de legislação contra a heresia não demoraria em ser dirigida pelo próprio poder temporal contra o poder espiritual do Papa. Sob Filipe, o Belo, as acusações contra Bonifácio VIII, contra Bernard Sasset, contra os Templários, contra Guichard de Troyes apoiam-se nesse poder reconhecido no rei para perseguir os hereges. Mais do que nunca, a confusão entre espiritual e temporal joga a favor deste último. Só precisamos recordar aqui as consequências mais graves: a Inquisição do século XVI, a partir deste momento só nas mãos dos reis e imperadores, iria fazer um número de vítimas sem comparação com as do século XIII. Na Espanha, chegar-se-à à utilização da Inquisição contra os judeus ou mouros, o que equivalia a deturpar por completo seus objetivos."
“Não foi a Igreja que inaugurou a repressão da heresia por meio da violência. Se a considerou em todos os tempos como um crime de ‘lesa-majestade' divina, nunca pediu a aplicação dessas penas severas que castigavam toda a lesa-majestade no direito imperial romano. No decurso dos três primeiros séculos, recorreu apenas à persuasão e as punições espirituais. Foram os imperadores cristãos, Constantino e seus sucessores, que, como 'bispos do exterior', castigavam com penas temporais - multas, prisão e flagelação os rebeldes contra a verdadeira fé, maniqueus ou donatistas. Foi a reaparição da heresia dualista, maniqueia (…) que provocou uma reação mais viva. Esta reação foi obra dos príncipes: Roberto o Piedoso, em 1017, mandou queimar os hereges de Orléans; "porque temia pela segurança do reino e a salvação das almas"; o imperador Henrique III, em 1052, mandou enforcar outros em Goslar. Até meados do século XII, todas as condenações à morte de hereges foram decididas pelas autoridades civis, muitas vezes impelidas pelas multidões fanatizadas.
A Igreja levantou-se contra essas mortes, principalmente contra as execuções sumárias. Foram inúmeros os Doutores e Pontífices que fizeram ouvir os seus protestos. Foram numerosos os cânones dos concílios que, excomungando os hereges e proibindo os cristãos de lhes darem asilo, não admitiam que se utilizassem contra eles a pena de morte. Deviam bastar as penas espirituais ou, quando muito, as penas temporais moderadas."
Daniel Rops, membro da Academia Francesa, História da Igreja (10 volumes)
"A Igreja durante muitos séculos se conservou tolerante com as dissidências usando apenas a catequese para convertê-los, e afirma que o que fez as autoridades agirem pesadamente contra os hereges, muito antes da Igreja, foi o caráter antissocial das heresias.”
J. Guiraud, Histoire de l 'Inquisition au Moyen Âge
"Em vista do caráter antissocial dos cátaros e outros sectários, devemos reconhecer que a causa da ortodoxia não era outra senão a da civilização e do progresso. Se o catarismo se tornasse só igual ao catolicismo, os efeitos teriam sido desastrosos. Se o ascetismo que professassem se tornasse universal, devia levar à extinção da raça humana. Eles consideravam pecado qualquer esforço de melhoramento material, o teria paralisado completamente o progresso da sociedade."
José S. J. Bernard, A Inquisição – História de uma instituição controvertida (1959)
A PARTE 1 está aqui.