domingo, 15 de agosto de 2010

HERESIAS MEDIEVAIS, de Nachman Falbel PARTE 7 (FINAL)

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Chegamos ao fim de nossa saga das heresias medievais. Nesta última parte, Joaquim de Fiore, os beguinos e outras milongas mais.

No que consistia a heresia de Joaquim de Fiore?

Joaquim de Fiore especulava a respeito do curso da história do mundo e da Igreja e suas profecias de caráter apocalíptico-reformista trouxeram consequências ainda mais fatais. Desenvolveu amplamente um fantástico simbolismo nu­mérico e uma profunda interpretação alegórica e tipológica das Sagradas Escrituras. Seu pensamento culmi­nava na profecia da última idade do Espírito Santo, perto de se realizar, que deveria levar a Igreja seculari­zada a uma reforma radical.

Joaquim não pôs a cristologia como centro de sua teologia da história, como até então se fizera, mas sim a Trindade. Segundo ele, as três pessoas em Deus cor­responderiam à três épocas diversas (status) da história da salvação, contendo 42 gerações de 30 anos cada uma; de acordo com Mt. 17, a idade superior a Cristo, ou Idade do Pai, era dominada pela letra da lei e pela carne e também era chamada de a época dos desposados e dos leigos; a Idade do Filho representava um estádio intermediário entre o espírito e a carne, denominada também a época dos clérigos; enfim, a terceira e última idade, a do Espírito Santo e a dos monges, que come­çaria a partir de 1260, e a corrompida Igreja da carne cederia lugar à perfeita Igreja do espírito.

A heresia de Joaquim de Fiore teve aceitação?

Bastante. Especialmente no ambiente rigorista dos espirituais, que representavam a corrente mais rígida na Ordem Franciscana. O Ministro Geral dos Menores João de Parma (1247-1257) também a acolheu com simpatia.

O franciscano Gerardo de Borgo San Donnino publicou, em 1254, o seu Introductorius in Evangelium eternum, no qual apontava como "evangelho eterno" justamente as obras de Joaquim, exaltava São Francisco como o novo legislador e profeta enviado por Deus e indicava os franciscanos (espirituais) como sendo a nova ordem da última idade anunciada por Joaquim. Foi desencadeada imediatamente uma feroz perseguição contra eles.

A Igreja conseguiu extinguir a heresia de Joaquim de Fiore, mesmo com a perseguição?

Não foi possível sufocar a corrente joaquimita; e a ideia de renovação da Igreja, que seria alcan­çada com a supressão de seu poder terreno, dominou, mesclada com ideias políticas de natureza variada, du­rante toda a Idade Média, a mente de muitos.

Ao lado dessa corrente, deve-se mencionar também certas manifestações de devoção exacerbada como as procissões dos flagelantes em 1260-1261, que, partindo da Perúgia, se espalharam pela Itália Central e Seten­trional, chegando até à Alemanha, e obrigando as auto­ridades eclesiásticas a intervir.

As ideias joaquimitas influíram também na eleição de Celestino V, em 1294, considerado por muitos o "Papa Angélico".

Pouco mais tarde esse movimento foi representado pelo médico e teólogo laico Arnaldo de Vilanova, homem de confiança de Bonifácio VIII.

O que era a seita dos beguinos?

Eram os Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Francisco, mas foram muito influenciados pelos escritos de Pedro João Olivi, a quem consideravam como sendo o anjo do Apocalipse do Capítulo 10, de modo espiritual, e diziam que sua face era como o sole que tinha um livro aberto na mão. Entre todos os doutores da Igreja, foi para ele que Jesus Cristo, sua Verdade e o Apocalipse se revelaram.

E o que foi o fenômeno das beguinas?

O fenômeno das beguinas (mulieres religiosae beginae, begginae), consequência da reforma gregoriana e da tendência à vida apostólica, foi promovido pelos pregadores ortodoxos e hereges. Sob a direção de uma mestra, levavam vida em comum, sem votos pro­priamente ditos, dentro de "cortes de beguinas", dedi­cando-se à oração, ao trabalho manual, à assistência aos enfermos, ao cuidado dos cadáveres e à educação das crianças. A corporação teria sido fundada, de acordo com uma lenda do século XV, por Santa Bega (+ 694), filha de Pepino, o Velho, ou pelo pregador penitencial Laberto, lê bègue (o gago) ou lê bèguin, em Liége, em 1177. Outros pensam que o nome deriva de albigenses, ou talvez do hábito beige ( = bege, lã em seu estado natural) das mulheres.

Gregório IX baixou em seu favor um breve de proteção (1233). Mas muitas begui­nas deixaram-se influenciar pelas ideias panteístico--quietistas dos Irmãos do Livre Espírito e tornaram-se suspeitas da Inquisição, de sorte que a associação toda foi desacreditada e o Concílio de Viena de 1311 orde­nou a sua supressão. Contudo, João XXII ainda permi­tiu que as beguinas ortodoxas levassem vida em comum e exercessem sua atividade caritativa. Alguns conventos de beguinas uniram-se à Ordem Terceira de São Fran­cisco ou de São Domingos.

E quanto aos beguinos do sexo masculino?

Os begardos (beguines, begines) eram uma associação mas­culina paralela à das beguinas, surgiram por volta de 1220 nos Países Baixos. Atuavam na assistência aos enfermos e no sepultamento dos mortos, e difundiram-se tão extensamente quanto as beguinas. Bem cedo se desviaram de suas tendências iniciais e se tornaram suspeitos de heresia, de modo que desapareceram antes do século XVI.

Quais as principais características dos beguinos?

Não concediam a seus irmãos mais que o consumo de alimentos necessários para a vida de cada dia e o uso de objetos, breviários ou vestimentas sagradas que servem para o ofício divino. Proibiam-nos de receber donativos pelas sepulturas outorgadas em igrejas de frades menores ou qualquer outra doação. Segundo seus censores e apologistas, a ideia mais pro­funda de sua doutrina era claramente de influência joaquimita: proclamava um estado futuro da Igreja, mais perfeito que o anterior, do qual São Francisco era o precursor, e cujo advento seria apressado pelas re­formas monacais.

Os beguinos viviam nas cidades e nos burgos em pequenas "casas da pobreza". Em dias festivos e nos domingos, os beguinos que viviam em comunidade reu­niam-se com seus familiares ou amigos. Liam juntos opúsculos ligados à sua doutrina que tratavam dos man­damentos, dos artigos da fé e das lendas de santos. Alguns deles mendigavam de porta em porta a fim de cumprir o voto de pobreza evangélica; outros traba­lhavam e ganhavam, mas levavam sempre uma vida paupérrima.

O que os beguinos pensavam de Jesus? E sobre São Francisco?

Os beguinos sustentavam que Jesus e seus Após­tolos, em sua vida mortal, não haviam possuído nada, quer em particular, quer em comum, pois nesse mundo eram pobres perfeitos. Afirmavam também que a Regra de São Francisco era a mesma regra que Jesus Cristo observara nesse mundo e legara aos seus apóstolos. Aquilo que São Francisco dissera aos seus irmãos quan­to à pobreza evangélica deveria ser interpretado deste modo: os que professam a Regra não poderiam pos­suir nada quer em particular, quer em comum, mas ter apenas o necessário à vida, adotando somente o uso "pobre" que frisa a indigência e proscreve todo su­pérfluo.

Os beguinos acreditavam que a autoridade de São Francisco era maior que a do Papa?

Sim. Para eles, São Francisco fora, após Jesus e os Apóstolos, o principal e o maior observador da vida e da regra evangélica; fora, também, o renovador nesta sexta idade da Igreja, que era a sua época. Afirmavam que a Regra era o mesmo que o Evangelho de Cristo, e quem a combatesse opor^se-ia ao Evangelho e, portanto, não passaria de um herético. Assim como o papa ou qualquer outra pessoa não poderiam modificar o Evangelho, ninguém poderia alterar a Regra de São Francisco e nem adicionar ou suprimir algo em seu texto. Portanto, o papa não teria o direito de anular a Regra evangélica de São Francisco pois ela era a ordem evangélica. Isso também era válido para a Regra dos terciários de São Francisco. E seguindo o mesmo raciocínio, os beguinos afirmavam que um papa ou um concílio não poderiam anular ou contradizer as aprovações, decisões ou ordenações confirmadas por seus antecessores; deste modo, as duas Regras de São Francisco, confirmadas pelos pontífices romanos, bem como todas as regras, não poderiam ser anuladas por nenhum papa_e nem mesmo por qualquer concílio ge­ral. Caso isso ocorresse, ninguém deveria obedecer, mesmo sob pena de excomunhão.

O papa não poderia dispensar uma pessoa dos votos feitos à Regra de São Francisco, isto é, à castidade, à pobreza e à obediência, e mormente do voto de pobreza feito a Deus, quando este voto foi simples e não solene. A pessoa que fizesse um voto de pobreza teria de observá-lo o resto de sua vida, pois a dispensa implicaria em descer de um grau de virtude e de per­feição mais elevado para um grau baixo e inferior; nes­te caso, o papa só poderia usar o seu poder para cons­truir e não para destruir. O papa não teria o direito de editar uma bula ou decretal que permitissem ou concedessem aos frades menores a prerrogativa de con­servarem, com previsão do futuro, nos silos e celeiros, o grão e o vinho para o seu uso e alimentação, pois isto seria contrário à Regra evangélica de São Francisco e, consequentemente, ao Evangelho de Cristo.

Pode-se dizer que as heresias dos séculos XII e XII reformularam a missão espiritual da Igreja?

Sim. Após muitos séculos de esforços de seus representantes para fortificarem a concepção de que todo poder emanaria dela. Essa volta completa a uma religião puramente espiritual foi, talvez, a rnaior contribuição do pensamento herético nos séculos XII e XIII. Porém, sua ideia central, que era sua força, continha, ao mesmo tempo, a sua debilidade. A aspiração de transformar o corpo místico de Cristo em uma verdadeira Igreja espiritual não se ajustava ao seu tempo (é sintomático o fato de ter transferido a realização de suas concepções para um futuro distante, frequentemente envolto em mistérios apocalípticos). Quando o Papa eremita Celestino V foi eleito e esperava-se que conseguisse adiantar-se à sua época, realizando parte das aspirações dos espirituais, ele viu-se dominado por seus conselheiros, aturdido pelo aparato material da Igreja, massacrado por uma função que não era mais de santos e puros. As chaves de São Pedro eram demasiado pesadas para o papa eremita, que acabou agindo como uma figura estranha e pequena, perdida na imensidão do palácio papal. A realidade vencera esse tipo de cristianismo ingênuo e puro, e a história da Igreja parecia irreversível.

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PARTE 3

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